Como qualquer organização, as universidades precisam de uma administração burocrática. Porém, tal não deve ser motivo para destruir o espírito de governo tradicional das universidades, como tem estado a acontecer em Portugal.
O governo tradicional das universidades assentava num modelo de autogoverno, com prestação regular de contas às entidades financiadoras, abstendo-se estas de interferir na gestão das universidades.
Em termos simples o modelo de gestão das universidades era semelhante aos das restantes sociedades de profissionais (de auditoria, advocacia, medicina, etc.), modelo que na gíria anglo-saxónica se chama de partnership. Neste modelo os partners (sócios ou professores) contratam um corpo de funcionários administrativos e de profissionais auxiliares (assistentes e auxiliares), sendo os futuros partners selecionados entre estes últimos.
Num modelo de partnership, a burocracia é reduzida ao mínimo porque os sócios controlam de forma colegial a gestão e não precisam de um sistema de informação muito detalhado.
Em geral, um sócio assume rotativamente o controle da administração a tempo parcial. Esta é a diferença fundamental em relação a outros tipos de organizações onde os gestores respondem e são contratados pelos acionistas para dirigir a burocracia que administra os restantes colaboradores. Numa partnership o objetivo da gestão é maximizar o rendimento dos partners.
De forma equivalente, numa Universidade o corpo de professores contratava o pessoal administrativo e os assistentes necessários elegendo um dos professores para exercer as funções de reitor ou diretor a tempo parcial. Na universidade o objetivo era a maximização do prestígio da universidade conseguido através do prestígio dos seus professores.
O que levou as universidades (em especial as que não adotaram o estatuto de fundação) a abandonar progressivamente este modelo eficaz de gestão?
A principal razão invocada é que as universidades se transformaram em grandes organizações do tipo empresarial pelo que têm de adotar os modelos e técnicas de gestão empresarial.
Um outro argumento é que a prestação de contas das universidades tem de ir para além da responsabilidade orçamental, nomeadamente prestando contas sobre a sua política de recrutamento, escolha de cursos e seleção de alunos.
A primeira razão é claramente falsa, como é demonstrado pelos bancos de investimento que, tendo sido integrados em grandes bancos universais, continuaram a ser geridos num modelo de partnership.
O argumento de que a prestação de contas deve ir além das contas financeiras já pode ter duas leituras.
Se considerarmos as universidades apenas como instituições de formação, mais ou menos profissionalizante, então a sua lógica pode assentar não na maximização do seu prestígio mas na minimização dos custos de formação. Isto é, o financiador seleciona a gestão que por sua vez contrata os professores, assistentes e funcionários de forma a minimizar o custo de formação. A ideia de ter universidades estatais abertas a todos os alunos baseia-se nesta filosofia.
No entanto, se entendermos que a universidade deve estar ao serviço do saber e da ciência o alargamento da sua responsabilização só pode aceitar uma leitura. A avaliação tem de limitar-se ao seu contributo científico. Esse contributo pode ser a base do seu financiamento, mas não pode ir mais além, sob pena de comprometer a liberdade indispensável ao progresso científico e cultural.
Ora, em Portugal, confundem-se estas duas leituras ao impor às universidades numerus clausus, limites ao valor das propinas, democratização interna, escolhas curriculares e uma entidade avaliadora focada essencialmente na atividade letiva.
Em particular, a ideia de que a democratização universitária passava pela inclusão de assistentes, alunos e funcionários nos corpos de gestão (em oposição a uma desejável participação em órgãos consultivos) perverteu o objetivo de maximização do prestígio dos seus professores, substituindo-o pela maximização do emprego total e seu controle por grupos de interesses, geralmente com ligações partidárias. Os recursos passaram a ser distribuídos de acordo com a relação de forças políticas, frequentemente invertendo a hierarquia tradicional, e quase sempre com prejuízo da autonomia letiva e científica mesmo ao nível departamental.
Uma consequência visível desta evolução perversa foi que muitos dos professores mais qualificados passaram a ter de procurar prestígio em atividades não relacionadas com a universidade, deixando as suas decisões estratégicas, promoções, planos de estudos e distribuição do serviço aos assistentes e professores vocacionados para a burocracia.
Esta tendência agravou-se com a criação da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) que, embora sendo uma fundação, é nomeada pelo governo e rege-se por princípios orientadores fixados legalmente pelo Estado.
Esta agência veio extravasar o que seria um trabalho desejável e útil de auditoria técnica da qualidade no ensino e investigação por iniciativa das próprias universidades, para se transformar numa entidade de acreditação dominada por uma perspetiva corporativa de formação profissional.
Assim, as universidades passaram a ser dominadas por uma burocracia que se autoalimenta e multiplica, interferindo cada vez mais na atividade dos professores sem que estes possam retirar qualquer benefício dessa avaliações. Isto é, os professores passaram a trabalhar para a A3ES em vez de ser a A3ES a trabalhar para os professores.
Em conclusão, este processo de “secundarização” das universidades resulta duma conceção errada do seu papel e da sua democratização e gestão, que diminui o contributo das universidades para a sociedade ao mesmo tempo que engana os alunos sobre a qualidade do serviço que a universidade lhes presta.
Tuesday, 24 May 2016
A burocracia e a perversão do espirito universitário
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